14/10/2010

Diário de um diletante - Pág. 53

"Gosto acima de tudo que saibas cuidar de ti. Tens uma bolhazinha onde só entra quem queres e onde és princesa e senhora, e menina também. E gosto que não me elogies, surpreendentemente. Apesar de ontem lá teres dito, colocando as duas mãos junto ao ventre e com um brilho no olhar, que tinhas alguma dificuldade com isso. Referiste a confiança como condição fulcral. E eu ouvi e soou-me a confiança. Não aquela segurança que outros entendem como pré-requisito para um domínio conformista que esperam prometido, mas confiança, efectivamente. De quem sabe o que é amizade, por exemplo. Confiança necessária para revelarmos as nossas frágeis virtudes também.
Sinto que te queres e me queres, quando queres, com consistência. Contigo aprendi também a dar espaço, a saborear a lentidão na volúpia. Coisa importantíssima. Não me importuna que não tenhas um físico perfeito, pois de sublimes físicos apenas acompanhados de arrojadas mas vãs promessas estou eu farto. Tu prometes o que podes dar e não por isso deixas de querer mais. Contudo, algo te impele para que o queiras consistente.
Disseste também, de boca cheia, exibindo os teus belos dentes, que não tens tempo para ginásios, e disseste-o em jeito de afirmação e não de constatação, e eu, mais uma vez me deixei seduzir pela gestão pessoalmente vincada que fazes da tua vida. Nunca, até agora, me entediaste, e não é porque tenhas por costume persistir no brilhantismo, mas porque simplesmente não me entedias. E descobri, ainda, no teu telhado que não só tens medo de gatos como da maioria dos animais. Adorei sabê-lo, e eu adoro animais, mas a peculiaridade da afirmação junto com uma persistência em continuares a defender a tua posição, e todo o contraste que isso em mim causava foram-me deliciosos.
Toda tu, e tudo de ti resulta muito pouco palpável, leve. Eu gosto disso. Não há jogos com o passado e com o futuro, apesar de conhecermos os de cada qual. No entanto, não os pesamos, nem fazemos com que pesem. Deixamos andar, não sei o quê, não sei para onde. Só sei que gostei e que gosto de te encontrar."

Conversas com o Diabo

-É, que bela cartilha tem sido a sua, meu caro:
Deixar o fraco passar à frente na fila.
Deixar o esfomeado servir-se primeiro.
Prescindir da donzela em prol do seu companheiro.
Reflectir sempre tendo como fim a igualdade.
Conceder ao colega o mérito e a saudade.
Perdoar até os modos do desesperado.
Apontar gentilmente o norte ao desorientado.
E libertar o oprimido do seu passado.
É realmente impressionante a sua cartilha, deve ser digna do seu orgulho, calculo. No entanto, cuidado, muito cuidado meu pretensioso e petulante amigo pois o mundo não mostra piedade a quem não lhe revela e lhe impõe as suas necessidades.
Dito isto berra para a empregada:
-Enche o copo e o prato deste senhor, sua cadela, que ele não sabe que morre de sede e de fome se não lhe for eu a dizer!

Depois de: "Noel, Poeta da vila"

Tenho medo de ti
porque não só és tu para mim quem és
como és para mim a possibilidade de eu ser quem sou


Um dia começo contigo
passo humilde e pequenino
o caminho
que de tanto proteger vimos fugindo

01/10/2010

Número 1

Podemos-nos queixar da situação mundial actual, rogar pragas ao nosso país, atacar a nossa própria geração e colocarmos-nos de lado salvaguardando cuidadosamente a nossa virtude, solitária, por inevitabilidade de ser única.
Ou podemos seguir em frente não olhando à volta, procurando o denominado sucesso a todo o custo e sacrifício. Ridicularizando quem critica. Minimizando todo e qualquer sofrimento, todo e qualquer sonho até ao ponto em que os negamos e podemos finalmente continuar a seguir em frente ignorando voluntariamente se nos dirigimos, ou não, para Norte.
Ou podemos resignarmos-nos às evidências da realidade e vislumbrar-nos que oportunidades nos oferecem e que oportunidades temos nós a oferecer. Sem nunca incorrer no erro de olharmos o mundo destituídos do sentido do direito a existir como seres únicos que somos ou destituídos do nosso poder de criação.
Vivemos uma época em que o discurso e os valores nos prometeram todos os ideais mas não nos ensinaram que nenhum ideal existe por si só, que nenhum ideal pode ser concedido ou mesmo conquistado. Não nos ensinaram que todo e qualquer ideal é construído. E é construído e moldado a partir do que dispomos, dando sempre origem a algo diferente do imaginado mas não por isso menos satisfatório. Não nos esqueçamos que tudo aquilo que hoje achamos belo foi muitas vezes forjado na adversidade, na solidão, na minoria, na opressão, essencialmente, na tensão com a realidade. Um Camões, um Cesário Verde, um Teixeira de Pascoaes, um Fernando Pessoa, um Agostinho da Silva. Qualquer destes homens era à primeira vista um inadaptado para o seu tempo, um insatisfeito com a sua própria realidade, um revoltado com a sua própria condição. No entanto, por terem tomado a sua desilusão pela mão puderam olhar a vida de frente e abrir os braços ao que queriam.

Carta de candidatura II

E, sim, Botelho, falo do mundo. E quero, e escolho falar do mundo.
Mas falo sobre este sabendo que me refiro na realidade ao meu quintal.
Contudo, talvez o quintal não fosse tão belo e as suas flores tão floridas se ele não sentisse que para mim representa o mundo inteiro.

Carta de candidatura

Este texto (ver acima) saiu moralista no sentido em que reflecte a minha moral e a vontade de a expressar, contudo, com a noção de que não ofereço nem pretendo oferecer mais do a minha própria pessoa. É, eu pretendo oferecer-me. Deixei de condenar em mim a vocação de líder, como alguns a caracterizam, ou de ser exteriorizado. O que no fundo não é mais que o facto de a minha natureza se coadunar com uma vontade de ser poema superior à de ser poeta.
Esta natureza é reforçada ainda por não ter havido nada na minha vida que me tivesse marcado mais do que a minha alegria ou realização incomodar os outros ao ponto de eles quererem matar essa vida que viam em mim por pensarem que não a possuíam eles, por eles mesmos.
Este é a origem de toda a minha filosofia e posições políticas. Este é o conflito maior que carrego, o meu principal ressentimento. Para mim, Pedro Garcia, justifica-se matar mas não se justifica não permitir viver. Esta é a minha causa.