10/12/2010

Nostalgia

Já que ando nostálgico, vou partilhar pela primeira vez o que escrevi em 2008 no inter rail com o bom e velho Pedro Garcia. A minha escrita é diferente mas tenho orgulho no meu percurso!

Diario de bordo até Guca (lá não escrevi, tava ocupado)

A primeira paragem desta viagem foi Barcelona, a minha antiga segunda cidade. Digo antiga porque aquele éden citadino mudou muito, e não foi para melhor.

Ao contrário do que se passou da última vez que passei por lá, quando fiquei hipnotizado por aquela vida, agora senti uma tensão no ar, menos alegria e liberdade, mais caras fechadas e entraves à descontracção. Apesar desta mudança ainda me diverti bastante, principalmente durante o dia, onde aquelas ruas sinuosas e a vida boémia da cidade continuam a palpitar, mas também me diverti pela sempre fabulosa companhia do Rui e do Nuno. Os nossos amigos estavam a poucos dias de voltar a Portugal depois de um mês de aprendizagem musical numa escola catalã.

Quando deixámos Barcelona, e os nossos dois amigos roídos de inveja, eu e o Garcia dirigíamo-nos a Munique. A meio do caminho decidimos mudar a nossa rota até Ljubljana, Eslovénia. Foi uma viagem serenamente magnífica, trocando de comboios aqui e ali, num total de 28 horas de paisagem verdejante e imponente.

Em Ljubljana esteve-se bem. Conhecemos pessoas incríveis, verdadeiros gentlemans, como diria o meu companheiro de viagem. Registo o André e o Vinko. O André levou-nos a almoçar num restaurante à nossa medida e deu-nos umas preciosas dicas sobre a cidade. O Vinko guiou-nos na primeira noite até ao nosso hostel e até Metelkova, sem dúvida um cativante refúgio artístico e revolucionário, composto por alguns pavilhões antigos decorados por grafittis, esculturas, e outras peças de arte de diversos estilos. À noite havia sempre um bar para nós, errantes, e os jovens que preenchiam aquele espaço fantasma chamado Metelkova eram marcadamente ávidos.

Depois de duas noites em Ljubljana acordámos com o bichinho da viagem a sussurrar no nosso ouvido novamente. Levantámo-nos determinados a seguir para outra e abraçámos o conselho do André: Bohinj.

Bohinj é uma vila que descansa entre gigantes montanhas, junto a um enorme lago, límpido e cristalino. Apanhámos o autocarro de Ljubljana até lá. Usufruímos de três dias mais tranquilos, genuínos e refrescantes, rodeados por uma paisagem natural surreal, de tão abundante que é. Árvores luminosas, um lago translúcido, comidinha boa, uma cascata selvagem e um parque de campismo envolvente e acolhedor. Sim, utilizámos a nossa tenda novinha em folha, finalmente. Depois de trilhar pelas verdes montanhas de quase dois quilómetros de altura, e de uns quantos mergulhos no lago, aqui estamos nós no centro de Bohinj. Eu bebo uma cerveja, o Garcia lê o seu livro, e ambos nos preparamos para ir tomar o nosso último jantar nesta terra. Amanhã partimos para a Croácia, errando.

Já lá vão oito dias desde o início da viagem!

Bohinj, 26/7/2008, 20:00


Depois de ontem ter visto um conjunto de tabletas de madeira, à porta de uma casa campestre de Bohinj, a indicar a distancia a que nos encontrávamos de várias cidades europeias desde aquele ponto preciso, percebi como estávamos definitivamente muito longe da nossa terra. Engraçado que de todas as inscrições que marcadas, e eram umas quinze, a nossa era a cidade mais distante: Lisbonera, 1900km.

Agora, numa estação de comboios perto de Bled na Eslovénia, Lesce-Bled, assimilo esta distancia de uma forma que ainda não me tinha atingido. Miúdos estranhos rodeiam-nos, labregos mesmo, espalham-se por esta esplanada colada aos carris. Arrotam, também as miúdas, falam alto e dão valentes murros na mesa, e agem de uma forma completamente brejeira. Incomodam um bocado mas também me rio com isto tudo. Sinto-os atrás de mim, personagens de um mundo totalmente diferente do meu, e bebo a minha quarta garrafa de cerveja consecutiva, sob um calor intenso, enquanto observo as gigantes montanhas que se erguem do meu lado esquerdo, lá ao fundo depois dos sujos armazéns e das longas planícies. Sinto-me verdadeiramente, e por fim, livre nos confins desconhecidos do estrangeiro.

Lesce-Bled, 27/7/2008, 16:03



A viagem de comboio desde Bled até Split foi, talvez, a melhor das viagens até agora. As pessoas no comboio eram mais parecidas connosco, jovens viajantes á procura de muito, e a paisagem que deixávamos para trás era bela e cativante. Uma croata de nome Matea meteu-se comigo e tivemos um bom tempo a conversar, conhecemos uns escoceses engraçados e até o pica da nossa carruagem era um baixinho com uma atitude castiça que descontraía.

A chegada a Split foi fabulosa. Eu e o Garcia, dentro de uma cabine só nossa, pasmámos o nosso olhar ao ver os prados e montanhas verdejantes a ficarem-se para trás perante o surgimento de um mar imenso, vibrante e cristalino, banhado pelo rejuvenescedor nascer-do-sol. Saímos da cabine e colocámos a cabeça fora da janela do corredor, contemplando toda aquela poesia natural refrescados pela carinhosa corrente de ar puro que nos levantava o escalpe.

De Split apanhámos o ferry boat para Hvar, supostamente a ilha mais bonita e desvairada da costa da Dalmácia. Até agora parece confirmar as expectativas. Mulheres bonitas são quase demasiadas, o mar que banha esta ilha é paradisíaco, e a vida que aqui pulsa é avassaladora. Embora um pouco hollywoodesco, o ambiente de Hvar é tão boémio e diversificado que não é difícil encontrar o nosso espaço por aí. Há muitas opções, muitos estilos e muitas pessoas.

Bem instalados na casa de uma curiosa família croata, num quarto só nosso, começamos finalmente a comprar cenas no supermercado e a cozinhá-las em casa. Temos tido sucesso na função de cozinheiros.

No quarto ao lado está um casal bem simpático de noruegueses da nossa idade, - o Mats e a Hannah.

Ainda nos encontrámos com eles ontem à noite e trocámos umas quantas histórias.

Hoje foi um dia do caralho. Depois do almoço apanhámos um táxi boat até Marinkova, uma ilha perto da nossa onde a “praia” é melhor e menos populada. Meto aspas na praia porque areia não existe, é só pedras. Mas perante o que aquilo é, as pedras são um mero pormenor. Mulheres fabulosas, esplanada de luxo ( e com bom gosto), uma água perfeita em todos os aspectos e uma paisagem inebriante de pequenas ilhas castanho-esverdeadas espalhadas pelo mar. Passámos a tarde entre banhos de sol, mergulhos refrescantes e másculas contemplações humanas! ( eu queria escrever humanas contemplações).

Regressámos ao final da tarde, outra vez de táxi boat claro, mas agora íamos os dois sozinhos deitados na proa, costas a descansar nos vidros da frente do barco. Foi com um sorriso de incrédulo orgulho que nos aproximámos de Hvar e com uma gargalhada sonora saltámos para terra.

Telefonámos finalmente para família e amigos de uma cabine pública de Hvar, junto ao mar. O Garcia ligou ao Rodolfo e à mãe, eu liguei à minha amiga Joana e à minha mãe também. Foram telefonemas rápidos que serviram para avisar que tudo corre tranquilo, mas souberam muito, mas mesmo muito bem. Foi estranho ouvir alguém falar português outra vez, ouvir a nossa língua depois de uma semana soou a um carinho indescritível. Estranho mas bom.

Hvar – 28/7/2008


O resto do tempo que passámos em Hvar foi um bocado marado. Nas tardes íamos passear e mergulhar no fresco mar Croata, passando por belas colinas rochosas e mulheres deslumbrantes. Mas as noites não nos foram queridas. Havia muitas raparigas bonitas, mesmo muitas, mas muita arrogância e frieza no ar, por detrás daqueles rostos de falsa felicidade. Não nos conseguimos adaptar à festa nocturna da ilha e acabávamos as noites cansados e frustrados.

Ainda nos encontrámos com um grupo de tias e tios portugueses de Lisboa de vinte e muitos anos, e passámos uma noite engraçada com eles. Nesse grupo havia uma miúda bonita e divertida que pareceu engraçar comigo mas apesar da minha vontade e de ter falado um bocado com ela ( Luísa, já agora) não me sentia com grande disponibilidade física e mental para tentar realmente. Muito cansado e confuso, e com uma dose de insegurança que também me diminuiu.

Na nossa terceira e última noite em Hvar saímos com o Matts e a Hannah, os nossos vizinhos noruegueses, e soube bem falar com eles. Pessoas inteligentes e humanas que nos trataram com carinho. Conhecemos nessa noite uma croata muito engraçada, cheia de brio e descontraída, que melhorou a nossa opinião sobre tudo aquilo. Falou e falou e continuou a falar e nós ouvimos divertidos.

Hoje acordámos cedo, arrumámos as nossas coisas, deixámos um bilhete na varanda dos nossos amigos noruegueses com sinceras despedidas e contactos electrónicos, e regressámos à estrada. Mais precisamente, ao mar. Que nem Van Weyden e Lobo Larsen! Ah, antes do mar ainda viajámos de autocarro de uma ponta da ilha até à outra pelas verdes e rochosas colinas de Hvar, numa estrada estreitíssima que nos obrigava a parar de cinco em cinco minutos para deixar uma qualquer velha carripana passar a rasar entre o nosso autocarro e o precipício desprotegido. Deu para soltar umas belas gargalhadas enquanto comíamos umas frescas maçãs verdes.

Chegados à outra ponta da ilha parámos num café para comer alguma coisa e saltámos para a proa do gigante ferry que nos trouxe de volta a Split. Quando nos encostámos na parte da frente com as nossas malas largadas no chão, uma corpulenta brisa a esvoaçar pelo corpo e o imenso mar à nossa frente, senti que é ali que me sinto verdadeiramente em casa, no caminho. A viagem é o meu terreno. Duas horas de voo espiritual colados ao mar da Dalmácea, com o sol a torrar-nos o corpo e a música do oceano a acarinhar-nos a alma. A chama reacendeu-se ali. Chegados a Split, com um sorriso rasgado estampado nos lábios, comigo em modo eléctrico, movido por uma energia natural imparável, fomos descobrir que existia um comboio às nove da noite directo para Praga ( eram 3 da tarde). Agradecemos à senhora da estação com palma, largámos as malas na cena das bagagens e seguimos à procura de um restaurante “bom e barato” para almoçar. Durante a procura abandonei a minha adorada mochila, agora decrépita e sem uma aba, e deixei-a junto a uma parede para quem a quiser agarrar. Comprei uma nova (“it’s a good (eastpak) fake!”, disse-me o cigano a quem comprei) e seguimos a com a nossa procura. Perguntei a uma dócil croata que trabalhava numa loja de roupa e ela, depois de uma agradável conversa num inglês arranhado, telefonou a um amigo que estuda inglês e chamou-o para nos ajudar a encontrar o tal restaurante. Cinco minutos depois lá estava ele, pouco sorridente, ao contrario dela. Suponho que só nos fazia aquele favor por amor a ela. Guiou-nos pelas ruas de Split, só ele, até um restaurante de comida mexicana, onde estamos agora. Uma esplanada confortável, comida muito boa a um preço justo, e uma empregada de mesa que me conquistou com o sorriso mais encantador que vi nos últimos tempos. Uma rapariga fabulosa por quem me sinto apaixonado neste preciso momento. Não consigo encontrar um único pormenor nela que não me delicie, completamente extasiado. Olhos rasgados, lábios macios e bem desenhados, cabelo liso castanho claro com uma pequena franjinha alinhada, um humor natural incrível, alegria sincera e contagiante intrínseca em cada movimento, em cada gesto, e um corpo formoso e tão generoso. Nem sei mais o que dizer, alem de “Que magia arrebatadora!”. Apesar desta contemplação platónica não me tratar bem, por não me oferecer mais do que um sonho, a minha vontade é de ficar aqui sentado eternamente a saborear este magnífico milagre da natureza, um verdadeiro poema divino. Ah, e ela trata-me tão bem...

Merda!!!


Cá estamos nós sobre carris outra vez.

Quando entrámos no comboio em Split, cidade por onde ainda devemos passar, tínhamos pela frente nada mais que 23 horas até Praga. Há uns meses eu ficaria assustado perante esta notícia. Hoje sorrio. Quanto mais horas melhor, é o que sinto.

Durante esta viagem já bebi um litro de cerveja checa por 2€, conheci um grupo de três irlandeses e uma simpática irlandesa, ouvi boa música no meu deficiente mp3, li as aventuras do meu colega Jack Kerouac pela estrada fora, ri-me descontroladamente com o Garcia com piadas atrás de palhaçadas durante as primeiras horas de viagem, vi a nossa cabine a ser invadida por duas inglesas ( um delas ostentava uma voluptuosa côdea) que nos obrigaram a tentar dormir sentados, fui acordado às 4 da manhã pelo Garcia a avisar-me que elas tinham bazado e podíamos voltar a dormir descansados, acordaram-me bruscamente às 8.30 da manhã com gritos de aviso “Croatian Passport Control!!!”, conseguimos filmar o processo seo o policia se aperceber, vagueei sozinho pelas carruagens com a cabeça lançada para a paisagem, comi uma salsicha de Frankfurt oferecida pelos irlandeses para pequeno almoço, um dos irlandeses deixou-me enviar uma mensagem ao Rodolfo para poder comunicar os pormenores da nossa chegada, e...sei lá o que fiz mais. Usufrui, acima de tudo.

Suponho que sejam umas 10 da manhã agora. O Garcia dorme enrodilhado na cabine. Eu vim para uma vazia para não o incomodar com a cantoria e com o tabaco. Hoje às oito da noite chegamos ao nosso destino checo: Praga. O Rodolfo está lá, a Elvia também, o Botelho também deve estar e o Tomás poderá surgir por detrás de uns arbustos a qualquer altura com o seu aspecto aborígene com um ipod na mão direita a destoar e a gritar “Foquinha, foquinha!!!”. Sim, eu sou a foquinha para o Tomás. Vai ser engraçado encontrar o pessoal todo cá fora, do nada. Todo não, quase todo. Falta o nosso ameigo França!

Mas, resumindo, eu e o meu companheiro de viagem aguardamos curiosos pelo momento em que os nosso amigos nos vão aparecer à frente, numa rua qualquer da República Checa com um nome estranho do género Svelkoniz pro baterni, com aquelas caras tão familiares e com as suas vozes portuguesas a ecoar estranhamente pela nossa alma. Entretanto continuo a saborear a viagem neste velho comboio, por entre estações abandonadas, fotografias verdes e amarelas, com o sol a bater na janela e o vento a bater no rosto.

1/8/2008, Algures entre a Croácia e a Eslovénia, no comboio.


Chegados a Praga ao final da tarde, artilhados com os malões que já fazem parte do nosso andar, lançámo-nos à descoberta do Hostel que o Rodolfo nos arranjou.

Apanhar o metro, trocar de linha, uma ou duas estações, 500 metros a pé, e lá entrámos. Foi a chegada mais facilitada até ao momento.

Instalámo-nos no quarto 316 do gigante albergue de estudantes e passageiros, descobrimos o número do quarto deles (já sabíamos que o Botelho também lá estava) e demos 3 pancadas na porta. Abraços e risadas, olhos abertos e incrédulos – um reencontro bacano.

Pouco depois já saíamos pela porta do Hostel os quatro. Sentámo-nos numa esplanada de madeira escura meio campestre com umas canecas Pislner fresquinhas à nossa frente. Aí principiámos a sessão de “Information Exchange”. Hum, agora que me lembro melhor, nós nessa noite não ficámos na esplanada mas na parte de dentro do restaurante. Não interessa, vai dar ao mesmo. Sentámo-nos, e o Botelho tomou as rédeas da conversa. Relatou com grande habilidade a história do seu caminho e prendeu-nos pela naturalidade e vivacidade com que nos contou as suas aventuras por Varsóvia, Paris e por uma terrinha ocupada por hippies situada na fronteira entre a Polónia e a Ucrânia, onde se encontrou com a prima. Sempre com uma saborosa caneca na mão e um cigarro nos lábios, eu e o Garcia íamos recebendo tudo aquilo com ternura. A conversa continuou seguindo o trilho do Rodolfo, que confessou a sua recente paixão por Berlim depois de três dias mornos em Amesterdão. Falou das pessoas, da incrível beleza e energia da cidade, e deixou-nos aos três com a “obrigação” de lá passar um dia.

Durante o jantar, nesse mesmo sítio, eu e o Garcia fomos partilhando as nossas experiências enquanto todos dividíamos dois ou três deliciosos pratos no centro da mesa. Dou especial destaque à velocidade com que eu e o imediato Garcia devorámos tudo o que nos aparecia à frente (eu, por exemplo, nas 23 horas de comboio só comi uma tigela de Goulash – uns 6 cubinhos de carne regados com um bom molho – estávamos esfomeados.).

Deixámos o restaurante já contentinhos e dirigimo-nos a um bar de reggae e funk. A nossa querida Elvia foi lá ter, e espalhou todo o seu charme e carinho com um doce s sublime “Olá!!”. Já não via aquele sorriso há quase dois meses, foi fabuloso.

O resto da noite foi feito com algumas cervejas, muitas conversas, mais intimidade e partilha, e uma boa quantidade de funk na pista, com o Garcia e o Rodolfo numa acesa competição pelo troféu de “dança de maior destaque” da noite.

O dia seguinte fez-se de passeios pelo centro da cidade, diferentes refeições no mesmo restaurante (vali a pena), e ao final da tarde, antes de voltarmos a atacar mais umas Pilsner, enquanto a Elvia desenhava num banco de jardim e o Rodolfo e o Botelho manjavam as suas mini refeições à GOE, surgiu um momento decisivo na nossa viagem.

O Garcia e eu discutíamos os nossos próximos passos, quando e para onde íamos a seguir, e depois desse sítio o que se seguiria, etc. Até que, depois de umas quantas hipóteses em que não chegávamos a um consenso, uma solução que desse para os dois, mergulhámos num demorado silêncio meditativo. Julgo que ambos sabíamos o que ia acontecer, mas estávamos os dois, cada um a pensar para si fitando o vazio, a tentar descobrir se havia outra saída. Acabei por encolher os ombros e interiorizar uma certeza: “Vai saber muito bem”. E fiquei á espera que o meu grande companheiro de viagem fosse o primeiro a sugerir o inevitável.

“Se calhar vamos ter que nos separar” desabafou segundos depois, com um sorriso embaraçado.

“Parece que sim ameigo”, respondi de pronto, a pulsar de emoção. Soltámos uma pequena risada e demos o assunto por encerrado. Partíamos no dia seguinte ( Domingo, dia 3) para Cracóvia e aí passaríamos as nossas duas últimas noites como parceiros nesta viagem. Depois disso, cada um seguiria o seu próprio caminho. Ele inclinava-se para aproveitar a derradeira parte destes dias em Berlim; eu seguiria para Guca, na Sérvia, curtir o festival de música balcânica, e compraria o bilhete de avião com partida no dia 13 em Munique e destino na nossa bonita Lisboa.

Depois desta decisão os nossos corpos foram invadidos por um turbilhão de sentimentos poderosos, nos quais e revelavam mais fortes o desejo de abraçar a solidão e o nervoso causado pelo receio do incógnito.

Seguimos para o restaurante do costume, agora na esplanada, e, movido pela adrenalina que o novo trilho me injectava, decidi pagar umas rodadas aos amigos. Os cinco a beber animados, a falar e a gozar uns com os outros, e eu e o Garcia acompanhados de perto por uma estranha sombra.

A noite foi marcada por longas caminhadas; uma fugaz passagem por uma discoteca marada preenchida por vietnamitas, muçulmanos, um ucraniano, nós os 5 e, claro, um ou outro grupinho de bifes bêbados. Ah, houve também uma multa nojenta de 35€ no metro para mim; e umas madrugadoras e rápidas despedidas dos nossos três três amigos. A Elvia num eléctrico a acenar de olhos semi-cerrados, o Rodolfo e o Botelho com uma “bolacha” (cheeseburger) na mão, preparados para apanhar o comboio das 5 e tal para Viena. Foi assim que os deixámos.

Recordo estes momentos a três horas e meia de distância de Praga, acabado de almoçar aqui no comboio, ao lado do meu amigo. Daqui a poucas horas vamos estar a abraçar o Ricardo Garcia em Cracóvia, e depois é cada um para o seu lado. E que lados mais mirabolantes se adivinham.

Não desesperes, querida solidão.

Já estou a caminho.

3/8/2008, entre a República Checa e a Polónia, no comboio.



Cracóvia recebeu-nos bem. Esta pequena e bonita cidade polaca deu-nos duas divertidas noitadas, o melhor hostel em que dormimos nesta viagem, comida típica muito boa a preços normais, e um encontro com o grande Ricardo Garcia, um companheiro de festa fabuloso.

Mas foi a alguns quilómetros de Cracóvia que vivi o momento mais marcante desta estadia polaca. Foi numa zona conhecida mundialmente por Aushwitz. Inicialmente senti-me inclinado a declinar o convite do Ricardo mas, depois de matutar sobre o assunto, achei que esta seria provavelmente uma oportunidade demasiado rara para a poder desperdiçar.

Então lá fui, com quatro horas de sono em cima e uma ressaca dilacerante. Foi tudo um bocado estranho, naturalmente. Qualquer coisa que eu fizesse por lá seria sempre conotada como marada por mim mesmo. Exemplificando: uma gaja meteu-se comigo em Aushwitz; perdi-me com o Ricardo em Aushwitz; troquei olhares com uma rapariga em Aushwitz; comi um cachorro quente em Aushwitz. Acho que estas situações explicam bem o feeling..

O que surpreendeu, acima de tudo, foi pisar o terreno onde centenas de milhares de pessoas foram torturadas e assassinadas como animais e, ao mesmo tempo, os extensos e verdejantes relvados banhados pelo sol e as elegantes àrvores que compunham o cenário terem formado uma imagem lindíssima aos meus olhos. Naquele sítio deslumbrante, coberto por uma natureza bela e rica, aconteceu a maior tragédia dos últimos cem anos, um genocídio que ficará cravado em todo o mundo para todo o sempre.

Nem tudo foi sombrio na nossa passagem por Cracóvia. As noites valeram a pena, com discotecas engraçadas, espaços cativantes, boa música d diversos estilos e mulheres bastante...apelativas.

Passadas as duas noites eu e o Garcia saltámos das nossas camas com a certeza de que nos íamos separar dali a um par de horas. Abandonámos o Mamma’s hostel às dez e meia da manhã com os malões às costas e caminhámos juntos até à estação. Os nossos comboios partiam com quinze minutos de diferença, sendo que o dele, para Berlim era o primeiro. Devido a vários contratempos acabámos por ter que nos despachar nervosamente e a despedida foi mais apressada do que aquilo que desejávamos. Só deu tempo para um abraço, uns gritos de “Alegria!”, e uma citação de Jack Kerouac ( On the road, o livro que estou a ler) que lancei em jeito de motivação suplementar: O caminho é a vida amigo.

E lá se deu a triste separação. Agora sou só eu e o mundo.

A minha partida deu-se ao meio dia e dez. Já são seis da tarde e estou a deixar a Eslováquia para trás em direcção a Budapeste, onde ficarei uma hora e pouco à espera do comboio para Belgrado. Ao todo são 20 horas de viagem. Sabe tão bem! Não sei como vai ser em Lisboa, quando já não dormir em cabines e carruagens decrépitas e balançantes. Mas vai ser difícil. Estes bancos e corredores já me são tão familiares...

Entretanto já se passou uma coisa engraçada. Estou na cabine com um americano, com a rapariga de Aushwitz e a amiga dela! Esta viagem tem-me dado cada reencontro, nem sei bem o que se passa.

5/8/2008 18 e tal, entre a Eslováquia e a Hungria.

3 Comments:

Blogger Garcia said...

Li tudo, com alegria e alguma comoção.
Eu, sempre um bocado nervoso com a ideia de que estava sempre aquém de mim mesmo. Mirabolesco sentimento! No entanto, esse pesado fardo que carregava já não me tolda tanto a visão portanto revejo com mais nitidez a beleza das peripécias, o deslumbre dos caminhos, a curiosidade das inseguranças, o ímpeto dos desejos.
Grande viagem! Sempre enriquecida pelo pitoresco e aventureiro ambiente do Lobo do mar do grande Jack London. Esse enorme livro que os dois lemos durante a viagem. Lembras-te do final? Quando ele acaba por vencer e se livrar do lobo larsen e junta forças para abraçar o desafio de amar aquela mulher. Apontei, na altura, no meu caderno, o excerto que ilustra essa passagem e a citação que ele faz já não sei de quem, que é também de grande brilhantismo.
Belos desafios que temos passado juntos, meu caro Águas. Desde a gloriosa expulsão dos Maristas juntaram-se muitos outros.
Acho que agora estamos também na fase que ainda agora referi que o final do lobo do mar representa. Venham a nós, "que somos quem somos", as dignas e formosas mulheres.
Para acabar, não são quaisquer amigos que se separam com aquela ausência de ressentimentos e aquela saudável mas substantiva leveza.
Abraço! ;)

6:30 da tarde  
Blogger Garcia said...

Ah, e muito aprendia eu contigo, com a tua maneira de estar.

6:45 da tarde  
Blogger Arnaldo Icaro said...

Não sei bem o que dizer depois destes teus comentários Garcia.
Tou emocionado. obrigado ameigo, estamos sempre juntos :)

2:47 da tarde  

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