Calçada amarela
Chegado à estação sentei-me conscientemente no banco onde o sol batia com maior precisão pois apetecia-me sentir o carinho aconchegante do calor solar no meu corpo. Fechei os olhos e usufrui ao máximo cada brisa fresquinha que se passeou pela minha bochecha. Recomecei a cantar entusiasmado, ainda de olhos fechados e com uma apurada projecção vocal, mas desta vez o som que espontaneamente me saiu da boca era proveniente da minha língua materna…”na terra dos sonhos podes ser quem tu és, ninguém te leva a maaal. Na terra dos sonhos toda a gente trata a gente toda por igual…”. Ia eu cantando animadamente liberto quando começo a ouvir no meu espaço auditivo um som mecânico e evolutivo, tão sinistro como atraente, a aproximar-se gradualmente – era o comboio com certeza. Levanto-me prontamente, abro os olhos devagarinho e entro na porta mais próxima de mim quando este pára.
Ao entrar na minha carruagem encontrei logo um espaço num banco para duas pessoas onde somente se sentava à janela uma simpática senhora, já de idade avançada, com um cabelo cinzento encaracolado bem tratado e uma pele clara e bem luzidia. Ao sentar-me a seu lado reparo que a senhora se levanta instintivamente, oferecendo-me o banco gentilmente. Agradeço com um sorriso enquanto a observo a mudar de carruagem e encho-me de alegria quando percebo que vou poder ir à janela como tanto gosto! Posso agora apreciar a fabulosa paisagem natural que vai ficando para trás à passagem do veloz comboio, o sol e o mar, as aves e as pessoas, é uma sensação de beleza em movimento que me cativa muito. Motivado pelo magnífico fenómeno a que assistia voltei a soltar a minha voz desmedidamente…”I´m on the highway to hell, highway to heeell!”, ia eu gritando bem alto com um divertido sorriso estampado na voz.
Quando me encontrava prestes a chegar à última paragem, o Cais do Sodré, apercebi-me de que não tinha comunicado com ninguém durante a viagem, exceptuando o sorriso de agradecimento que lancei à idosa senhora que me concedeu o seu espaço. Á saída da minha carruagem reparei que a estação estava com bastante gente e muitas delas olhavam directamente para mim, umas de olhos bem abertos, outras a sorrir compulsivamente, outras a sorrir compulsivamente de olhos bem abertos. Fui retribuindo os sorrisos e acenando vivamente às pessoas que me fitavam enquanto passava por elas em direcção à saída da estação com um andar gingão. Achei piada a esta recepção e decidi dirigir-me à tasca mais próxima para beber uma imperial bem geladinha e para conversar com alguém.
Foi então neste perdido caminho que fui brindado por uma imagem maravilhosa, surreal de tão real que era, que arrepiou positiva e incrivelmente cada pêlo do meu corpo - a minha alma palpitou. Uma rapariga, com os seus 20 anos, saltitava alegremente ao andar enquanto ia brincando a conversar com as suas amigas de uma maneira bem castiça. Eram um grupo de seis belas e vistosas pré-mulheres, bem vestidas e possantes, que iam espalhando charme com seus cabelos brilhantes e suas roupas curtas e chamativas; mas ela demarcava-se claramente das amigas. Não era alta e poderosa como elas, não andava na rua como se estivesse numa passagem de modelos como elas nem utilizava aquelas roupas excessivamente luminosas e extravagantes. Nada disso. Gravei o meu olhar no seu curioso movimento corporal, meio acriançado e desajeitado, mas invulgarmente sensual. Delirei com a doçura do seu olhar e a magia do seu sorriso, tão bem encaixados naquela querida epifania de 1,60m. O seu cabelo castanho-de-avelã, ondulado até ao nível do seu sensível queixo, ia balançando expressivamente enquanto espalhava energia por tudo o que a rodeava – era uma imagem gloriosa a que o mundo me apresentava naquele lindo momento! Comecei a deslizar levemente na sua direcção, como que num estado de transe, com todo o meu ser extasiado nela, nada mais existia no meu Estar e Ser, naquela altura todos os meus sentidos estavam com ela, Todos. Só a via a ela, só a ouvia a ela, só a sentia a ela…e sentia-a tanto!...
Ao aproximar-me cada vez mais acabei por entrar naturalmente no seu campo de visão. Ela parou de andar de uma forma natural e ficou a fitar-me olhos nos olhos, tinha uma singular expressão que aliava o expectante ao afável. Que olhar que ela tinha..! Os seus olhos resplandeciam prodigiosamente como o reflexo que um fascinante nascer do sol origina no ondulante oceano. Eram grandes e escuros, pretos mesmo!, tão escuros que se uniam à sua íris numa extraordinária junção que lhes conferiam uma profundeza tão infinita que seria preciso uma vida inteira para descrevê-la em palavras.
Ao chegar a ela já o meu corpo transbordava energia, ouvia todo o meu organismo a cantar, todo o meu ser delirava desmesuradamente, arrisco afirmar que naquele momento eu podia voar se quisesse…mas não era isso que eu queria.
- Olá… - disse-me docilmente, esperando a minha reacção com um sorriso maroto e afectuoso.
Alarguei meu sorriso até ao horizonte e, sem nunca descolar o nosso olhar, estendi minha mão direita harmoniosamente e senti a sua sedosa bochecha através de um simples e mágico toque com o polegar. Ela abriu os olhos surpreendida e eu vi-os a cintilar..
- Vamos? – perguntei-lhe tranquilamente.
- …Onde?
- Não sei. Vamos simplesmente…?
- Porque estás assim vestido? Ou semi-vestido no caso… - interrogou-me divertida.
- Porque sim – respondi feliz.
- Vamos então – disse-me ela com um sorriso puro e contagiante, aconchegado entre as suas sedosas bochechas…
Fomos.
4 Comments:
Porra, Águas, tá fabuloso!... Verti uma lágrima ou outra.
E está muito bem escrito, muito, mas muito real.
Quero-te ouvir a gritar: Quem é que escreve muita bem? Hein, quem é?
li outra vez o texto. arrepiei-me positivamente outra vez... :)
n comentei pq n calhou mas tb gostei mt.
e acontece-me várias xs escrever um post que acho q tá mt fixe e o pessoal n reagir como esperava. as espectativas são uma porra... ;-) Bjs gds
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