19/09/2010

Revisitando Nietzsche

Com o intuito de mais uma vez afirmar, mas também de fundamentar algumas posições que tomo, aqui vai Nietzsche e um pequeno excerto dele. A constatação que aqui é feita e sua consciência são um dos pilares basilares do meu entendimento da vida.

XVII
Chegado a este ponto, vou dar à minha hipótese acerca da origem da "má consciência" uma expressão provisória, a qual, para ser compreendida, necessita ser meditada e ruminada. A má consciência é para mim o estado mórbido em que devia ter caído o homem quando sofreu a transformação mais radical que alguma vez houve, a que nele se produziu quando se viu acorrentado à argola da sociedade e da paz. À maneira dos peixes obrigados a adaptarem-se a viver em terra, estes semianimais, acostumados à vida selvagem, à guerra, às correrias e aventuras, viam-se obrigados de repente a renunciar a todos os seus nobres instintos. Forçavam-nos a irem pelo seu pé, a "levarem-se a si mesmos", quando até então os havia levado a água: esmagava-os um peso enorme. Sentiam-se inaptos para as funções mais simples; neste mundo novo e desconhecido não tinham os seus antigos guias estes instintos reguladores, inconscientemente infalíveis; viam-se reduzidos a pensar, a deduzir, a calcular, a combinar causas e efeitos. Infelizes! Viam-se reduzidos à sua "consciência", ao seu órgão mais fraco e mais coxo! Creio que nunca houve na terra desgraça tão grande, mal-estar tão horrível! Acrescente-se a isto que os antigos instintos não haviam renunciado de vez às suas exigências . Mas era difícil e amiúde impossível satisfazê-las; era preciso procurar satisfações novas e subterrâneas. Os instintos sob a enorme força repressiva, volvem para dentro; a isto se chama interiorização do homem; assim se desenvolve o que mais tarde se há-de chamar "alma".
Aquele pequeno mundo interior vai-se desenvolvendo e ampliando à medida que a exteriorização do homem acha obstáculos. As formidáveis barreiras que a organização social construía para se defender contra os antigos instintos da liberdade, e, em primeiro lugar, a barreira do castigo, conseguiram que todos os instintos do homem selvagem, livre e vagabundo, se voltassem contra o homem interior. A ira, a crueldade, a necessidade de perseguir, tudo isto se dirigia contra o possuidor de tais instintos; eis a "origem da má consciência". O homem que, por falta de resistência e de inimigos exteriores, colhido no potro da regularidade dos costumes, se despedaçava com impaciência, se perseguia, se devorava, se amedrontava e se maltratava a ele mesmo; este animal a quem se quer domesticar, mas que se ferre nos ferros da sua jaula; este ser a quem as privações fazem enlasguecer na nostalgia do deserto e que fatalmente devia achar em si mesmo um campo de aventuras, um jardim de suplícios, uma região perigosa e incerta; este louco, este cativo, de aspirações impossíveis, teve de inventar a "má consciência". Então veio ao mundo a maior e mais perigosa de todas as doenças, o homem doente de si mesmo foi consequência de um divórcio violento com o passado animal, de um salto para novas situações, para novas condições de existência, de uma declaração de guerra contra os antigos instintos que antes constituíam a sua força e o seu temível carácter. Acrescente-se que o facto de entrar uma alma animal dentro de si mesma, deu ao mundo um elemento tão novo, tão profundo, tão inaudito, tão enigmático, tão rico, em contradições e em promessas de futuro, que o aspecto do mundo mudou realmente. E em verdade faltavam espectadores divinos para saborear o drama, que então começou, e cujo fim não pode ainda prever-se , drama demasiado delicado, demasiado maravilhoso e antinómico para que careça de significação no planeta. Desde então o homem veio a ser um dos feitos mais felizes da "criança grande" de Heraclito, que tem por nome Zeus ou Azar, e desperta em seu favor interesse, ansiosa expectação, esperanças e quase certezas, como se anunciasse alguma coisa, como se preparasse alguma coisa, como se o homem não fosse um fim, mas apenas uma étape, um incidente, uma transição, uma promessa...

"A Genealogia da moral" de Friedrich Nietzsche