10/07/2008

O passeio de Alfredo

Estava um dia nublado de atmosfera pesada, mas Alfredo preparava-se, mais uma vez, para o seu passeio matinal à beira-mar numa praia que lhe vinha oferecendo uma tranquila solidão nos últimos meses. Alfredo vestia-se com simplicidade. Roupas sóbrias, de cores gastas e de corte austero. Uma roupa que lhe transmitia segurança e reflectia força.
Ao sair de casa não pega no carro que utiliza todos os dias para ir trabalhar e segue a pé em direcção à praia. No caminho vai organizando, com rigor, todas as suas tarefas laborais. Equacionando soluções, e minimizando os problemas limando suas arestas. No meio deste exercício racional vêm-lhe à memória Margarida. Amor antigo, nunca devidamente concretizado, mas nunca por ele esquecido. Como o rosto de Margarida lhe aparecia... Inquietantemente belo. Uma beleza rara pertecente a um mundo que não teve coragem de abraçar. Mas deliciava-se com tais memórias entregando-se ao sentimento, procurando algo, encontrando consolação.
Contudo havia alguma coisa nestas memórias, nestas fantasias que nunca o deixou de angustiar.
A presença da morte cada vez que se lembrava e regozijava com as memórias de Margarida.
Porquê? Porque é que sentia desfalecendo sempre que se confrontava com o amor? Porque é que lhe percorria aquele enorme vazio pela alma.? Uma sensação de não ter nada a oferecer, de poder vir a tudo perder. Um enorme sentimento de solidão...
Era uma dúvida que o acompanhava penosamente desde há muito, muito tempo. Dúvida para a qual nunca teve resposta.
Chega finalmente à praia. O tempo estava mau, mas o vento estava calmo e quente, como acontece pouco naquelas bandas, o que parecia vir a prometer um belo passeio.
Descalça os sapatos no fim do paredão de madeira e continua a caminhada, agora com os pés nus, sentindo a areia, a sua textura e o seu comportamento para com cada pegada. Dirige-se à zona da beira-mar e por aí decide caminhar até ao rochedo que finalizava com grandeza aquela bela praia. A meio caminho começa a ouvir uma agitação estranha na água. Visualiza rapidamente o local de onde vinha aquela agitação e apercebe-se que é uma pessoa! Uma pessoa a afogar-se! Diante de si e de uma praia deserta e isolada. Por momentos desvia o olhar, não querendo acreditar na gravidade da situação, não querendo assumir o carácter dramático do momento. Mas olha novamente, fixando os olhos arregalados pela adrenalina.
É de facto uma pessoa a afogar-se.
-Socorro!
Ainda consegue gritar a pobre criatura.
Alfredo não tem alternativa e lança-se ao mar. Nada rápida e sofregamente e alcança então a pobre vítima. Agarra-a e coloca-a nas suas costas, exigindo-lhe que se segure aos seus ombros com firmeza. Nada agora em direcção a terra. Pasmado por sentir que o corpo que carrega é apenas o de uma criança. Chega finalmente à areia e coloca a criança delicadamente deitada de barriga para cima. Esta encontra-se inconsciente. Alfredo não hesita e imediatamente começa a fazer respiração boca-a-boca ao rapazito enquanto lhe aplica fortes contracções no peito com as duas mãos. O processo alonga-se... Alfredo desespera, está exausto! Mas algo lhe exige que continue, que não desista. Por fim, quando parecia já não restarem esperanças, a criança tosse e cospe a água engolida, retomando a consciência. Alfredo alegra-se ainda atordoado e abraça o rapazito de roupas esfarrapadas e físico bastante frágil. A criança agradece-lhe com uma voz estranhamente familiar. Ele responde-lhe e observa-a... Um rapazito de uma beleza extraordinária mas com um físico bastante débil, imberbe e desnutrido. Pensa para si mesmo: Como é que algo tão belo e tão frágil conseguiu sobreviver?
Recomposto, começa, agora, a assustar-se com o que a situação pode prometer. Terá sido abandonado? Será orfã, esta criança de aspecto tão maltratado. Ter-se-á tentado suicidar? Qualquer das situações constrangem Alfredo. Por um lado sente-se estranhamente envolvido, por outro sente não estar à altura dos compromissos que podem acarretar tais possíveis realidades. Mas mais uma vez, ao olhar para a criança, fica encantado com o brilho do seu olhar, a sinceridade dos seus gestos. Que estranha e frágil beleza! Apaixonado, Afredo, vê surgir em si o instinto paternal e com este começa a limpar a criança e a responder-lhe, agora, com segurança e convicção aos seus pedidos delirantes de ajuda.
Esta estava toda suja, coberta por uma textura estranha de côr negra. Alfredo cuidadosamente trata de limpá-la. E quando, por fim, está a limpar a sua cara confronta-se no maior dos seus espantos com uma situação paradoxal. A criança era ele próprio!...
Envolve-lhe-se um sentimento de surpresa mas um sentimento carregado também de uma profunda saudade. Aquela, ao ver que Alfredo o reconhece, ergue-se com uma enorme vitalidade sobre a sua frágil estatura e abraça-o, soluçante. Este chora e retribui o abraço. Com o último soluço de Alfredo a criança desaparece. No pico da emoção, acorda. Sobressaltado e de rosto molhado. À frente da sua cama está o seu computador ligado com o texto em que andava a trabalhar. Na última frase lê-se: Porquê? Porque é que sinto o Vazio cada vez que me deparo com o amor?

1 Comments:

Blogger Vidal said...

Bons olhos o leiam, Xô Garcia.

Abraço

10:15 da tarde  

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